Todo dia, você acorda com péssimas notícias. Na sua boca, pode ter
certeza, nasceu o embrião de uma cárie. Quanto à pele, não se iluda:
milhões de bactérias aproveitaram a noite para um verdadeiro banquete à
base de células descascadas, suor, gordura, um ou outro glóbulo
sangüíneo e eventuais resíduos de pus, que são encontrados com fartura
depois de várias horas sem lavagem. Os produtos dessa comilança irão
inevitavelmente fermentar, causando mau cheiro, mais cedo ou mais tarde.
Água, pura e simplesmente, não resolverá o problema. Para se garantir
um bom dia, é preciso lançar mão dos ácidos graxos e aqui não se trata
dos que estão presentes na gordura do leite e da manteiga no desjejum,
mas dos componentes básicos de produtos como o
sabonete, o
xampu, o condicionador e a pasta de dentes.
Conforme a combinação dessas substâncias gordurosas com outros ingredientes é que se criam as mais diversas fórmulas de
beleza
e higiene, responsáveis pelo faturamento de 19 bilhão de dólares, das
cerca de 1000 indústrias cosméticas nacionais, no ano passado. Mas
apenas os especialistas em
Cosmetologia,
área das Ciências Farmacêuticas que elabora essas poções perfumadas,
sabem como a expectativa de cada um pode se transformar, ou não, em
realidade diante do espelho pele macia, cabelos sedosos, sorriso mais
branco, sem contar a sensação de frescor anunciada pelo
desodorante. "É chocante mostrar a ciência que existe por trás de um mero
banho",
afirma a farmacêutica Maria Elisete Ribeiro, da Universidade de São
Paulo, que há vinte anos estuda composições de cosméticos. "Isso porque
as pessoas preferem acreditar que o produto pode fazer milagres. E
ignoram as reações químicas disparadas na rotina de todas as manhãs.
"Quando
você mergulha na banheira ou toma uma ducha, a água só consegue
arrastar algumas partículas de sujeira, coladas na superfície do corpo.
Pois todo tipo de poeira ou de germe, mal encosta na pele, fica grudado
em uma película oleosa. Trata-se da melhor emulsão protetora de que se
tem notícia a mistura do suor com a gordura secretada pelas glândulas
sebáceas. O suor, como é ácido, dificulta a sobrevivência dos
rnicroorganismos nocivos que, porventura, ousam se instalar na pele; já o
sebo reveste a superfície, cobrindo certas brechas que poderiam servir
de entrada para os germes. Ao longo das horas, porém, essa película
engrossa, intercalando camadas de óleo e de sujeira. A pele fica cada
vez mais pegajosa, e daí só tem um remédio o sabão."Ao aquecer a mais
de 80 graus Celsius qualquer espécie de gordura com soda cáustica ou
outra substância muito alcalina, eu realizo uma saponificação, ou seja,
fabrico sabão", explica o farmacêutico Luiz Antonio Gioielli, da
Universidade de São Paulo, que há quinze anos pesquisa os ácidos graxos,
o elemento comum às substâncias gordurosas.
"Nessa reação, formam-se moléculas com dois pólos, um solúvel em água e outro, em gordura." Em pleno
banho,
essas moléculas de sabão ficam cravadas em cada minúscula gota de água,
deixando para fora a sua metade capaz de se ligar à gordura do corpo.
Na realidade, ninguém molha o corpo por inteiro. Uma olhada pelo
microscópio mostra que as gotículas de líquido se espalham distantes
entre si sobre a pele. Mas tudo bem, porque as moléculas de sabão,
alcalinas, atraem feito pequenos ímãs aquele sebo, que é ácido, com pH
(índice de acidez) em torno de 4,5. Seqüestrada, a sujeira oleosa é
conduzida pela água, até escoar pelo ralo. "Quanto mais alcalino é um
sabonete,
mais gordura ele consegue retirar", conta Gioielli. Sabonetes, aliás,
sempre são alcalinos. Se fosse possível fabricar um sabão realmente
neutro, ele não ofereceria vantagens, porque não limparia direito. O
Ministério da Saúde pretende dar um prazo para que as indústrias retirem
das embalagens esse adjetivo, usado erroneamente como sinônimo de
inofensivo.
É verdade que, quanto menos alcalino é o
sabonete,
menos ele irrita a pele. Essa qualidade dependerá da proporção de
gorduras animais e vegetais utilizadas como matérias-primas. "O balanço
desses ingredientes também faz um
sabonete
ser mais duro ou mais macio", diz a farmacêutica Maria Elisete. Assim,
os óleos derivados de animais com sangue quente se dissolvem em
temperaturas mais elevadas do que óleos vegetais. Estes, em princípio,
precisam ficar solúveis em temperaturas mais baixas para serem
consumidos como fonte de energia pelas plantas e, por isso, são usados
em sabonetes que derretem com facilidade.Um dos óleos mais aplicados nos
chamados sabonetes finos é o de coco. Nove em cada dez estrelas nas
prateleiras das perfumarias contêm esse ingrediente, idêntico ao da
popular barra de sabão branco, usada para lavar roupa. "O óleo de coco,
com seus doze átomos de carbono, assegura muitas bolhinhas de sabão",
explica Maria Elisete. Espuma, contudo, não é sinal de limpeza.
"Podem-se ter sabonetes sem um pingo de espuma, cujo efeito é apenas
psicológico", garante a farmacêutica.
À massa de sabão
propriamente dita, os fabricantes acrescentam ainda corantes, essências
de perfume e uma boa dose de óleo livre, isto é, que não passou pela
saponificação. Sua função é besuntar novamente a área da qual acabou de
se tirar o sebo. Pois sem a sua gordura natural, a camada externa da
pele apareceria tal qual é um forro de células mortas e esturricadas.
Fora o problema da aparência, a pele seca é muito mais suscetível a
irritações. É por isso que alguns discutem se não faria mal tomar
banho com
sabonete
mais de uma vez por dia, costume de muitos brasileiros. No entanto, em
condições normais, uma a duas horas depois de você ter saído do
banho, sua pele já terá recuperado a oleosidade própria.Você molha a cabeça, espalha o
xampu, massageia, deixa formar bastante espuma. O farmacêutico Artur Gradim, atual presidente da Associação Brasileira de
Cosmetologia,
resume o processo: "Lavar bem os cabelos é uma questão de
eletricidade". Frases sintéticas como essa são raras quando Gradim
conversa sobre cabelos, seu assunto predileto, depois de ter acumulado
mais de 25 anos de experiência em diversas indústrias de cosméticos,
dedicando-se com mais afinco à pesquisa de tratamentos capilares.
Segundo sua descrição minuciosa, cada um dos 300 000 fios de uma
cabeleira é revestido por células transparentes, sobrepostas como as
telhas de uma casa.
Ao escorregar fio abaixo, o sebo secretado
pelo couro cabeludo não fica apenas na cutícula, como se chama essa
cobertura incolor, mas entra nas frestas entre as células. "Graças a sua
carga elétrica, o
xampu ergue essas células para a limpeza", descreve Gradim. Os detergentes contidos em um
xampu podem ser idênticos aos de um
sabonete
(quadro). Este, no entanto, por ser sólido, deixa resíduos presos na
cutícula. Tais partículas desviam os raios luminosos, tornando os fios
opacos. "Quando a cutícula está fechada, os cabelos brilham mais", conta
o especialista. Quem acabou de lavar a cabeça, porém, está com as
células que revestem os fios abertas, como galhos de uma árvore
esbarrando uns nos outros. O atrito tem efeito certo: seus cabelos estão
embaraçados.Se cabelos opacos e difíceis de pentear são sintoma de
cutícula capilar aberta, então a receita de brilho e maciez é simples:
basta fechar suas células. Nesse instante, entra em cena o
condicionador.
Além de conter doses de ácidos graxos, para repor
a oleosidade perdida com a primeira etapa da lavagem, o condicionador
possui carga elétrica oposta à do
xampu,
ou seja, positiva. Explicada dessa maneira, a fórmula de cabelos
bonitos parece simples. Mas não é. Como bem sabem os físicos, cargas
opostas se atraem. Portanto, os cosmetólogos devem equilibrar a
eletricidade dos componentes do
xampu
e do condicionador, de modo que o uso combinado dos dois produtos
aproxime os fios na medida certa, sem arrasar o volume dos cabelos."As
vezes a intenção é dar volume como nas fórmulas com proteínas"
exemplifica o químico Sérgio Bianchini, pesquisador da Universidade de
Campinas, no interior de São Paulo. "As proteínas se depositam sobre os
fios, tornando-os mais encorpados." Bianchini, junto com o estudante de
Química Luiz Claudio Pavani, vem estudando, há dois anos, a degradação do cabelo, especialmente pelo excesso de sol.
Esse é um dos temas, pode-se dizer, mais cabeludos da
Cosmetologia,
como pôde constatar Pavani, no final do ano passado, ao apresentar seu
trabalho, com jeito tímido, a uma platéia de químicos de todo o país. Na
ocasião, suas declarações foram recebidas com alguns protestos: "Nenhum
produto é capaz de restaurar as pontas dos cabelos", disse o
pesquisador no microfone. "Uma vez partido, um fio não tem conserto. Na
ocasião, os fabricantes não gostaram do que ouviram, porque, nesse
aspecto, dezenas de produtos prometem o impossível o fio de cabelo é
uma longa linha de células mortas e não há como alterar um tecido morto.
O melhor que um
xampu
e um condicionador podem fazer por você é proteger os fios, evitando,
por exemplo, que se quebrem com a mera escovação. Semanas depois, na
Unicamp, o químico Bianchini reconheceu que fabricantes e pesquisadores
usam a palavra restaurar com significados diferentes. "Para um
bioquímico, restaurar seria recuperar a estrutura original", diz ele.
"Os produtos de
beleza
podem recuperar a aparência, pois são cheios de truques. Os
condicionadores têm polímeros, substâncias que formam uma capa sobre o
fio. Esse filme artificial, tapa buracos na cutícula e força a união das
pontas, como uma cola. " O disfarce dura até se lavar a cabeça de
novo.As bactérias da boca são boêmias por excelência. Aproveitam a
noitada para devorarem, mais do que nunca, restos de alimentos entre os
dentes. Ao mesmo tempo, se reproduzem numa velocidade espantosa: de
quinze em quinze minutos, cada bactéria se divide em duas.
A
esbórnia é facilitada pela diminuição de saliva na madrugada afinal,
esse líquido vive expulsando algumas bactérias, goela abaixo. De manhã,
portanto, ninguém deveria acordar achando que tudo está em ordem. Pois,
na boca, como em todo fim de festa, tem resto de comida e sujeira por
tudo quanto é lado. Os fanfarrões, junto com esses restos, se depositam
nos dentes e gengivas, criando a famosa placa bacteriana."Os dentes
estão sempre interagindo com o ambiente", explica o bioquímico Jaime
Aparecido Cury, professor da Faculdade de Odontologia de Piracicaba. A
placa bacteriana, no caso, deixa a saliva ácida, o que é péssimo para os
dentes. Isso ocorre com maior intensidade se alguém ingere açúcar." A
saliva e o esmalte do dente compartilham dois minerais, o cálcio e o
fosfato, cuja tendência é passar do lugar mais alcalino para o mais
ácido. Desse modo, quando o pH da saliva fica inferior a 5,5, ela começa
a roubar cálcio e fosfato dos dentes. Com isso, depois de certo tempo, o
equilíbrio ácido-básico volta a reinar. Então, os dentes podem até
tomar de volta os dois minerais.No entanto, se logo de manhã, por
exemplo, a pessoa toma seu café açucarado e sai de casa sem escovar os
dentes, a degradação de substâncias pelas famintas bactérias reinicia.
No
final, os dentes acabam perdendo mais minerais. Quando os dentes mais
perdem do que ganham a batalha pelo cálcio e pelo fosfato, a cárie
aparece. Ela é a própria desmineralização do esmalte", define Cury.
Segundo ele, o flúor é a substância ideal para reverter o processo.
Durante muito tempo, acreditou-se que o flúor protegeria os dentes ao
reagir com substâncias do esmalte para construir uma verdadeira barreira
de minerais. Assim, a saliva ácida passa a seqüestrar cálcio e fosfato
dessa barreira, em vez de retirá-los do próprio dente. Além disso, hoje
se sabe que o flúor deixa a saliva supersaturada de cálcio e de fosfato,
acelerando a remineralização do esmalte.Jaime Cury é um velho defensor
do flúor na pasta de dente. Há um ano e meio, desfrutou uma grande
vitória, como assessor técnico do Ministério da Saúde: a Portaria número
21, a qual estabelece o padrão de 600 partículas por milhão (ppm) de
flúor nas pastas de dente. Contudo, há flúor e flúor. Algumas formas
químicas da substância reagem com o chamado abrasivo, o componente
não-solúvel do dentifrício, normalmente à base de silício, que serve
para retirar mecanicamente a sujeira, ao ser esfregado no dente.
A
reação cria o flúor inativo, um flúor que não serve para nada. "Há dez
anos, existiam cinco marcas no mercado brasileiro que anunciavam a
presença de flúor", recorda Cury. "Dessas, porém, apenas uma marca
continha flúor ativo. " A situação melhorou e muito. No ano passado,
entre dezenove marcas analisadas, apenas duas, a Forhan7rsquo;s e a
pasta infantil da Mônica, não passaram na prova de fogo.A batalha mais
recente envolve os enxaguatórios que prometem dissolver a placa
bacteriana. Um cuidadoso exame realizado pela equipe da Faculdade de
Odontologia de Piracicaba, acusou que os detergentes desses produtos
podem inibir até 70% do flúor. E, então, volta-se praticamente à estaca
zero. Como o
xampu e o
sabonete,
a pasta de dente também possui ácidos graxos na forma de detergente,
para amolecer a placa bacteriana e os restos de alimento.
"Esse
detergente não pode fazer espuma, ou a pessoa engasgaria", esclarece o
químico Heytor Panzerri, da USP, em Ribeirão Preto. Há vinte anos, ele
busca fórmulas para a fabricação de dentifrícios mais baratos e
eficazes. "Mas não importa a composição de uma pasta, quem faz o serviço
pesado da limpeza é a escova de dentes", reconhece o pesquisador. "A
função da pasta é apenas auxiliar." Por isso, costuma ser à base de gel,
mistura de glicerina e água, que provoca o deslizamento das cerdas.A
função do
desodorante
é evitar que bactérias, habitantes das axilas, estraguem, o seu esforço
matutino para passar o dia inteiro limpo e, quem sabe, cheiroso. O suor
aumenta durante o dia, para refrescar o corpo, aquecido pelo calor do
sol. Mas esse líquido em si não tem o aroma desagradável graças ao qual
leva má fama.
O mau cheiro é devido à degradação de seus
componentes por tais bactérias. "Os desodorantes são combinações de
álcool, bactericidas e essências perfumadas", descreve a cosmetóloga
Maria Elisete Ribeiro, da USP. "Ao diminuir a quantidade de bactérias,
diminui a degradação e o mau cheiro." A maioria dos produtos também é
antiperspirante, ou seja, ataca o problema por duas frentes.Além de
matar os germes, os antiperspirantes reduzem a umidade de que as
bactérias sobreviventes tanto gostam. Ao usá-lo, sais de alumínio ou de
outros metais tapam literalmente os poros"A área de aplicação é muito
pequena e, por isso, não causa problemas no sistema de controle de
temperatura do organismo", esclarece Maria Elisete. Essas moléculas têm
um tamanho perfeito: embora sejam grandes demais para serem absorvidas,
elas se encaixam na saída do suor. O líquido acaba sendo reabsorvido
pelo organismo. Mas, no decorrer do dia esses sais de alumínio vão
saindo dos poros, como rolhas de champanhe. Termina o efeito do
antiperspirante. Às vezes, resta o perfume. Sua combinação com o suor
degradado costuma ser terrível. Afinal, se um cheiro incomoda muita
gente, dois podem incomodar muito mais.
Fonte: http://super.abril.com.br/ciencia/reacoes-bom-dia-quimica-presente-atividades-dia-a-dia-439756.shtml